quarta-feira, 17 de junho de 2015
Pesquisadora da UECE comenta a falta de interesse dos produtores culturais em levar a acessibilidade à cultura
Há cerca de 15 anos a acessibilidade para surdos e cegos nos meios audiovisuais tem sido a causa pela qual luta a professora Vera Lúcia Santiago Araújo.
É meta da pesquisadora permitir que os meios se adaptem à surdez e à cegueira incluindo as pessoas que passaram anos à margem dos eventos culturais. É
trabalho (e desejo) dela fazer com que o surdo e o cego participem, por exemplo, de uma exposição de arte, de uma visita ao museu, de uma sessão de cinema,
de um jogo de futebol. Por isso, a professora Vera investe nos trabalhos com audiodescrição, para cegos, e com legendagem e janela de Libras (a Língua
Brasileira de Sinais), para surdos.
Nesta entrevista ao O POVO, ela celebra as conquistas que as pesquisas nas áreas já obtiveram - como o maior acesso a esses recursos, o aumento no número
de profissionais para os serviços, o avanço das pesquisas e a maior conscientização de que cegos e surdos podem, sim, consumir os mesmos produtos culturais
que aqueles que veem e ouvem.
Mas, como não é fácil incluir uma comunidade que passou várias gerações alheia à cena cultural, há obstáculos. É difícil convencer produtores culturais
de que há um público excluído das obras. Assim como não é fácil fazer com que o poder público se aproprie da causa. Muitas vezes, as ações ficam restritas
ao gestor que está no comando. E, por vezes, é um processo lento também mostrar aos surdos e cegos que eles têm direito à inclusão.
É aos poucos que a professora Vera, junto com demais pesquisadores da audiodescrição e da legendagem, vai argumentando a favor de um grupo que clama para
ser compreendido.
O POVO – Além das pesquisas, como atua o Laboratório de Tradução Audiovisual que a senhora coordena, na Uece?
Vera Lúcia Santiago Araújo – Já fizemos audiodescrição em vários lugares, em cinema, exposições culturais, no Cine Ceará (festival de cinema). Isso chamou
atenção de alguns produtores culturais, mas tudo o que está acontecendo com os profissionais que saíram da Uece (a Universidade Estadual do Ceará) tem
sido por iniciativa governamental. Com o atual secretário da Cultura (do Estado), Guilherme Sampaio, que é aberto a essas questões de acessibilidade, estão
acontecendo vários eventos nessa área. Mas acho que ainda estão faltando mais ações. Os profissionais estão aí, mas os produtores não estão sensibilizados
para tornar seus produtos acessíveis. É possível tornar acessível uma peça de teatro, um filme, uma exposição de arte, um jogo de futebol ou qualquer outra
competição esportiva. Fizemos recentemente, na pesquisa de um mestrando (da Uece) que é cego, a audiodescrição de um jogo do Ceará, no Castelão. Mas falta
que essa iniciativa parta dos produtores culturais, contratando profissionais, e não que isso parta apenas de universidades e do poder público.
OP – Quem são esses produtores a que a senhora se refere?
Vera – Cineastas, produtores culturais, produtores do próprio Cine Ceará. Só fizemos parceria com o evento uma vez. Parece que neste ano terá novamente.
OP – Como a tecnologia está aliada à acessibilidade nos meios audiovisuais hoje?
Vera – Outros lugares do Brasil já têm aplicativos para que a pessoa com deficiência possa acessar do seu celular a audiodescrição, legendas ou a janela
de Libras, no cinema. Mas, para isso, os cinemas precisam disponibilizar a tecnologia. Isso está engatinhando. No Ceará tem um grupo que trabalha com isso.
Já tive reunião com eles. É o grupo do professor Agebson Rocha, do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). Pelo que ele me
falou, a intenção é desenvolver um aplicativo, mas ele não conseguiu nenhum acesso às salas de cinema aqui.
OP – O aplicativo desenvolvido pelo professor Agebson funciona com voz sintetizada, em vez da voz humana. Na época em que foi lançado, houve uma polêmica
a respeito disso. O que a senhora pensa sobre esse recurso?
Vera – Acho que a voz humana é bem melhor. Há várias questões envolvidas na audiodescrição, e a locução é uma delas, porque, com ela, você dá vida, dá
expressividade. No caso dos outros aplicativos, a audiodescrição é feita com voz humana.
OP – A principal proposta desse aplicativo é audiodescrever filmes antigos. Para tornar os filmes acessíveis, esse aplicativo não é útil, mesmo com voz
sintetizada?
Vera – Claro que sim. Nós estamos em fase de saber o que funciona e o que não funciona. Conheço um projeto para tornar um curso de matemática financeira
acessível. Muitas das vezes a voz sintetizada teve seu papel. Não dá para descartar. Também já tivemos experiência para verificar uma audiodescrição mais
detalhada e outra menos, e pudemos observar que as duas deram resultado, dependendo do público. Voz sintetizada é uma modalidade muito nova. Acho que a
melhor forma é você estar aberto a todas as possibilidades, além de fazer pesquisa de recepção para ver o que vai funcionar ou não.
OP – Com mais profissionais no mercado para o trabalho da audiodescrição e da legendagem, há como todos serem absorvidos?
Vera – Poderiam, se os produtores culturais os contratassem. O problema é que, normalmente, os produtos não são transformados em acessíveis.
OP – E o que falta para tornar esses produtos acessíveis?
Vera – Há o problema do acesso das pessoas com deficiência a esses produtos culturais. É difícil convencer os produtores culturais da existência desse
público. Muita gente não conhece a audiodescrição e a legendagem. Muitos deficientes visuais desconhecem que podem ir à exposição de arte. Por exemplo,
a exposição do Da Vinci (do artista italiano Leonardo Da Vinci, que está ocorrendo em Fortaleza). É uma exposição maravilhosa, mas ninguém pensou em acessibilizá-la.
Além dela, muitas outras exposições interessantes não são acessibilizadas. O que acontece são ações pontuais. A Secretaria de Cultura, por exemplo, faz
um evento e decide colocar audiodescrição e legendagem. Mas isso são coisas bem pontuais. É preciso tornar acessível aquilo que está disponível à população.
OP – Alguns produtores reclamam que já colocaram recursos de acessibilidade em suas obras, mas o número de pessoas com deficiência que visitaram o local
foi muito baixo. Como fazer para haver mais interesse?
Vera – A primeira coisa é convencer a pessoa com deficiência de que os produtos culturais não podem ser realizados nos horários que eles preferem. Não
há uma resistência, e, sim, um desconhecimento. Na Inglaterra houve uma campanha nacional, falando sobre audiodescrição, legendagem e interpretação da
língua de sinais. Isso já é algo incorporado lá. Todos os DVDs que saem lá já têm esses recursos disponíveis. Acho que está faltando uma campanha, uma
mobilização. Já participei de um congresso que não conhecia audiodescrição.
OP – Aqui no Brasil, a senhora tem algum modelo de bom exemplo de acessibilidade?
Vera – Já tivemos várias exposições. Uma delas foi a Viva Fortaleza, realizada no Dragão do Mar. Ela foi tornada acessível com vídeos audiodescritos. Temos
uns 12 DVDs acessíveis, como Irmãos de Fé, do padre Marcelo Rossi, o filme do Chico Xavier (Chico Xavier - O filme), o filme sobre Bezerra de Menezes (Bezerra
de Menezes - O diário de um espírito). Também tivemos Ensaio sobre a cegueira, que foi audiodescrito pelos meus alunos de Belo Horizonte.
OP – Quando foi feita a audiodescrição dos filmes do Cine Ceará, muitos cegos reclamaram que eram obras desconhecidas e queriam ter acesso a filmes comerciais.
Como é o contato com esses produtores?
Vera – Sempre é o cineasta que se sensibiliza, mas ele quer que o trabalho seja feito de graça. O que a gente quer é que eles entendam que somos profissionais
e que precisamos ser pagos. Me incluo, embora eu não viva disso, mas sou responsável pela formação de pessoas que querem viver disso, e preciso que o mercado
esteja aberto para eles. Os alunos se apaixonam, entram de cabeça na história, mas não conseguem entrar no mercado.
OP – Mas isso ocorre porque o cineasta não vê um ganho imediato para ele, não?
Vera – Talvez. Em termos de público.
OP – Qual o papel que o deficiente pode desenvolver, para convencer o cineasta da importância da acessibilidade?
Vera – O deficiente precisa acreditar que ele tem direito ao acesso. Após tanto tempo de exclusão, ficou complicado a pessoa com deficiência acreditar
que ela pode ir a uma peça de teatro. E todas as vezes que trabalhamos em uma peça, é uma logística enorme. Temos que convencer o produtor a alugar o equipamento.
Muitas vezes fizemos sem esse equipamento, com todos os alunos. Na época, a diretora do Theatro José de Alencar, Izabel Gurgel, cogitou comprar esse equipamento,
que não é tão caro. Graças a Deus agora, na Uece, temos esse equipamento. Mas ele é para pesquisa, e não será disponibilizado para o público.
OP – Quanto custa?
Vera – R$ 33 mil o equipamento completo, com cabine para os audiodescritores, rádios para recepção e mesa de som. Os rádios é que são mais caros.
OP – A senhora levou um grupo de cegos para um jogo no Castelão. Como foi esse trabalho?
Vera – Fez parte de uma pesquisa de mestrado de um aluno da Uece, o Celso Nóbrega. A proposta era disponibilizar a audiodescrição em jogos de futebol.
Já existem várias ações mostrando que o cego que vai ao estádio precisa da audiodescrição, para descrever a torcida, a comemoração, saber se houve algum
incidente dentro do estádio. O que a gente percebe é que muitos deficientes acompanham de casa, porque acham que não é necessário ir ao estádio. Mas estamos
tentando encontrar o ponto.
OP – Como é a preparação do audiodescritor que trabalha em um filme ou peça e daquele que realiza a audiodescrição de um evento ao vivo?
Vera – São preparações diferentes. Para quem vai trabalhar em filmes, audiodescrevendo, legendando ou interpretando com Libras, é necessário que conheça
um pouco sobre cinema. Tem que estar entre o cinéfilo e crítico de cinema. Ele tem que conhecer o gênero que está audiodescrevendo. Tem que ter noções
de linguagem de câmera, história do cinema. Se ele vai para televisão ou teatro, a mesma coisa. No caso do teatro, há uma diferença, porque embora o audiodescritor
tenha o roteiro, muita coisa acontece na hora, de forma improvisada. No caso do ‘ao vivo sem roteiro’, como um jogo de futebol, o audiodescritor precisa
munir-se de informações básicas, como história do time, conhecer o campeonato e os jogadores, além de todas as questões que possam surgir na hora. É preciso
que o audiodescritor esteja no perfil do que será audiodescrito.
OP – Como os grupos de pesquisa na Universidade podem ajudar a tornar a audiodescrição e a legendagem mais acessíveis para emissoras de TV e produtoras
de cinema?
Vera – A universidade procura recursos de todas as formas para realizar o trabalho. E a maioria desses recursos vem por meio de editais públicos.
OP – Os editais de fomento à cultura têm contemplado a audiodescrição?
Vera – Até bem pouco tempo, não. Mas agora, com regulamentação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), o Governo só irá financiar projetos que tenham cópias
acessíveis.
OP – E como está a acessibilidade para surdos e cegos na TV?
Vera – Era para ter começado em 2008. Duas horas semanais das emissoras de TV tinham que ter audiodescrição, legendagem ou Libras. A Associação Brasileira
de Emissoras de Rádio e TV (Abert) entrou com recurso no Ministério das Comunicações para que fosse retirada a audiodescrição. Eles alegaram que não havia
profissionais e que as emissoras não estavam preparadas. Depois de muita discussão e portarias, a audiodescrição começou, mas apenas para o sinal digital.
Hoje quatro horas semanais das emissoras são audiodescritas, e daqui a dez anos deverão ser 20 horas semanais.
OP – Isso é razoável?
Vera – É muito pouco, principalmente se não houver um comprometimento das emissoras. Elas podem audiodescrever um filme e passar mais de uma vez. Eles
estarão cumprindo a lei, é muito pouco. Desde 2006 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que as campanhas eleitorais tivessem a janela de Libras.
As emissoras colocam uma janela muito pequena, que quase não dá para ver. Eles cumpriram a lei, mas não promoveram acessibilidade.
OP – Qual é a situação do Ceará em termos de acessibilidade? Estamos em uma situação ruim ou já fomos piores?
Vera – Sempre tivemos um certo apoio dos governos estadual e municipal. Agora mais ainda, com o secretário Guilherme Sampaio (da Cultura do Estado), mas
é sempre uma questão pontual. Todo mundo acha lindo e maravilhoso, mas precisamos de mais apoio.
OP – A Uece tem pesquisado há muito tempo sobre esses temas, mas, paradoxalmente, parece não haver muitos alunos com deficiências visual e auditiva na
Universidade. A senhora sabe quantos cegos e surdos estão matriculados na Uece atualmente?
Vera – Cegos, uns 20. Surdos, até onde eu saiba, nenhum. A UFC (Universidade Federal do Ceará) não tem pesquisa nessa área, mas tem uma secretaria, coordenada
pela professora Vanda Leitão (a Secretaria de Acessibilidade UFC Inclui). A UFC tem uma política de acessibilidade. Na Uece, acho que a acessibilidade
não é prioridade, creio que é mais por desconhecimento. Temos uma comissão chamada Uece Acesso mas, na minha visão, uma comissão não é suficiente. No Centro
de Humanidades da Uece temos cerca de quatro cegos que precisam se virar.
OP – Como a senhora começou a se interessar pela acessibilidade?
Vera – Foi jogado no meu colo. Eu sempre gostei de legendagem. Quando voltei do doutorado, em 2000, decidi trabalhar com ela. Como eu tinha trabalhado
com legendagem em VHS durante o doutorado, comecei a trabalhar com a legendagem que passava na televisão. Pensei que era apenas uma pesquisa, mas acabei
ficando até hoje. A gente acaba se envolvendo na luta dos deficientes. E tudo isso esbarra em uma questão que, para mim, é muito cara, que são a educação,
o acesso e a inclusão, com recursos que estão ao alcance da mão. Quando você começa a trabalhar nessa área, não sai mais.
OP – Qual é o próximo desafio da senhora nessa área?
Vera – Meu desafio é formar locutores para trabalhar com audiodescrição em jogos de futebol. Isso é uma pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico). Estou trabalhando com fonoaudiólogos, tentando montar padrões para que eu possa formar esses locutores. Agora que temos o equipamento
para a audiodescrição, outro desafio é formar audiodescritores para atuar ao vivo, sem roteiros.
OP – A senhora prevê um cenário melhor na audiodescrição durante os Jogos Olímpicos de 2016?
Vera – Acho que não. Até agora não houve contato para realização de audiodescrição. Para um evento grande como as Olimpíadas, é preciso que o trabalho
comece muito antes. Se houver, creio que não será bom. Os audiodescritores de todo o Brasil estão juntos, no objetivo de tornar o País acessível.
OP – Quem trabalha com uma pessoa com deficiência desenvolve uma relação bem maior do que a de trabalho. Os alunos que se preparam para serem audiodescritores
devem, então, estar abertos a essa proximidade.
Vera – É necessário. Para trabalhar e fazer pesquisa, é preciso se envolver. Se isso não acontecer, não é possível realizar pesquisa. Quando tem um trabalho,
convoco a todos que tenham essa proximidade. É muito fácil para quem enxerga tapar os olhos e achar que entende o cego. Não é assim. Também é fácil tapar
os ouvidos e dizer que conhece o mundo do surdo. E também não é assim. No caso do surdo, outras questões existem, porque envolve outra língua, a questão
da comunicação e outra cultura.
OP – Qual o papel do cego durante a elaboração da audiodescrição?
Vera – O cego realiza o trabalho de consultoria. Mas, para fazer esse trabalho, o cego tem que ter formação em audiodescrição. Não basta ser cego. É aconselhável
que ele participe do processo de elaboração da audiodescrição ou que ele verifique o trabalho final. Essa audiodescrição só acontece quando não é ao vivo.
Mas ainda não está fechada, porque estamos pesquisando para ver como fica melhor. Tudo é um processo. No início, pensava-se que não poderia audiodescrever
eventos ao vivo. Isso caiu por terra. Ainda estamos procurando o ponto.
OP – A senhora acha que a formação de uma pessoa com deficiência para trabalhar com produção cultural pode ocorrer na fase adulta?
Vera – Por causa da língua, o acesso para os cegos é mais rápido e pode ser feito em qualquer idade. Para os surdos, isso é mais difícil. O mundo é mais
inacessível para surdo do que para cegos. Muitas pessoas acham que o surdo tem problema de cognição, mas isso não é verdade. Há a barreira da família e
principalmente da língua.
OP – O Governo Federal está criando um guia sobre acessibilidade. O que a senhora acha indispensável nesse documento?
Vera – Esse guia vai dizer para os produtores culturais como se faz uma boa legendagem, audiodescrição e janela de Libras. Esse é o ponto mais complicado.
Estou mais envolvida com a legendagem. Nessa parte vão constar questões técnicas, de linguagem e questões tradutórias.
Fonte: O POVO online
Pesquisadora da UECE comenta a falta de interesse dos produtores culturais em levar a acessibilidade à cultura
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