quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Infecção em usuários de lente de contato pode causar cegueira e até perda do globo ocular

Renata TurbianiDe São Paulo para a BBC News Brasil
Início do grupo Image caption  Ceratite por Acanthamoeba é causada por protozoário encontrado na água
Mulher coloca lente de contato
Direito de imagemGETTY IMAGESImage captionCeratite por Acanthamoeba é causada por protozoário encontrado na água
Fim do grupo

Em 2016, em um dia de jogo do seu time do coração, o Atlético Mineiro, pela Copa Libertadores da América, o engenheiro Kaell Braga, de 37 anos, repetiu

uma ação muito comum no seu dia a dia: colocar as lentes de contato.

Só que daquela vez ele não teve o cuidado adequado - em vez de usar os produtos certos para desinfecção, optou pela água da torneira.

A partir daí, foram mais de dois anos de luta contra uma doença rara e gravíssima, a ceratite por Acanthamoeba,
infecção
 crônica da córnea causada pelo protozoário parasita Acanthamoeba spp.

"Antes disto acontecer, eu estava sentindo um desconforto no olho esquerdo. Fui ao hospital e a oftalmologista que me atendeu disse que se tratava de um

defeito epitelial na camada mais externa do tecido corneano, que eu acredito ter sido causado em uma brincadeira com a minha filha", relembra.

A médica o orientou, então, a usar uma pomada durante cinco dias e ficar sem a lente neste período. Porém, apenas três dias depois, na data da partida

do seu clube, ele, com os ingressos já comprados, decidiu não seguir uma parte das recomendações, e trocou os óculos de grau pela lente de contato.

"O desconforto que eu sentia antes piorou, e meu olho também começou a lacrimejar. Voltei a passar a pomada porque achei que era o mesmo problema, mas

dessa vez o tratamento não surtiu efeito. Retornei ao hospital e, depois de duas consultas, me encaminharam para um especialista em córnea", recorda.

Início do grupo Image caption  Infecção crônica da córnea é causada pelo protozoário parasita Acanthamoeba
Ilustração mostra a Acanthamoeba
Direito de imagemGETTY IMAGESImage captionInfecção crônica da córnea é causada pelo protozoário parasita Acanthamoeba
Fim do grupo

Em junho de 2016, ele recebeu o difícil diagnóstico, resultado justamente daquela - aparentemente inofensiva - lavagem da lente. O que acontece é que a

Acanthamoeba spp. está disseminada no ambiente, especialmente na água, seja ela doce ou salgada e, não se sabe ainda o porquê, "gosta" de lentes de contato.


O tratamento de Braga foi feito, inicialmente, com o uso de cinco colírios diferentes, que deviam ser pingados quase de hora em hora, inclusive de madrugada.


"Minha visão foi totalmente afetada, eu não enxergava nada e também sentia uma dor absurda no olho. Tive de me afastar do trabalho por um tempo."

Após alguns meses, ele até conseguiu se curar da ceratite, porém, o uso prolongado de medicamentos tão potentes acabou prejudicando seriamente sua córnea.

Foram inúmeras as tentativas para recuperá-la, como o uso de soro autólogo, feito a partir do seu próprio sangue, e implante de membrana amniótica.

Nada disso resolveu, e a solução final foi o transplante de córnea. A
cirurgia
 ocorreu em março deste ano e, com ela, por ora, ele conseguiu recuperar um pouco da visão - sua acuidade visual atual é, na terminologia médica, de 20/50

- parcial -, o que já é um bom índice para o seu caso.

O engenheiro ainda teve de fazer uma operação para tratar a catarata, mais uma decorrência da Acanthamoeba spp. Por conta destes dois procedimentos, ele

ficou sete meses de licença.

"Agora já consigo fazer atividades básicas e até dirigir. Também voltei ao trabalho. Minha vida, finalmente, começa a voltar ao normal", comemora.

Início do grupo Image caption  'Minha vida, finalmente, começa a voltar ao normal', comemora Kaell, que pouco a pouco recupera sua visão
Kaell Braga sorri para foto
Image caption'Minha vida, finalmente, começa a voltar ao normal', comemora Kaell, que pouco a pouco recupera sua visão
Fim do grupo

Causas e números

Os principais fatores de risco para o desenvolvimento da ceratite por Acanthamoeba são se expor à água, seja de chuveiro, mar, banheira, jacuzzi e piscina,

usando lente de contato, em especial a do tipo gelatinosa. Vale enfatizar que, como o parasita gosta de viver neste ambiente, qualquer pingo pode representar

uma ameaça. O descuido com a higiene das mãos no manejo das lentes também ajuda na sua propensão.

Apesar de rara, a doença tem preocupado cada vez mais os especialistas, e isso no mundo todo. O último alarme foi relatado recentemente no British Journal

Ophthalmology, publicação científica inglesa. Analisando dados no intervalo de 1984 a 2017, os pesquisadores descobriram um surto no país entre 2011 e

2017.

A literatura médica indica que os casos foram mais frequentes na década de 1980 nos Estados Unidos e na Inglaterra. No Brasil, os primeiros apareceram

há cerca de 30 anos.

"Hoje, atendemos de dois a três pacientes por semana, o que é um número muito alto", afirma Denise de Freitas, membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia

(CBO) e professora do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).


Início do grupo Image caption  Imagem do olho de um paciente que ficou completamente cego após contrair a doença
Imagem do olho de um paciente que ficou completamente cego após contrair a doença
Direito de imagemKAELL BRAGA/ARQUIVO PESSOALImage captionImagem do olho de um paciente que ficou completamente cego após contrair a doença
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De acordo com a especialista, a infecção por Acanthamoeba spp. tem um potencial devastador, e é a pior que a pessoa pode pegar nos olhos. "Ela é tão violenta

que pode levar à perda do globo ocular", afirma.

Além de ter os piores prognósticos, os pacientes mais gravemente afetados (cerca de um quarto do total) acabam com menos de 25% de visão ou ficam cegos

após um tratamento prolongado - pode durar até 10 meses. No geral, 25% dos casos requerem transplantes de córnea. Há ainda situações em que se faz necessário

retirar o globo ocular e substituí-lo por prótese de acrílico e olho de vidro.

Os Estados Unidos e a Inglaterra preconizam que há mais chances de sucesso quando a infecção começa a ser tratada nas primeiras duas semanas.

"O problema é que no Brasil as pessoas procuram os médicos depois de dois meses, então o início do uso de medicamentos é tardio", diz Denise.

Sintomas e prevenção

Os sintomas da ceratite por Acanthamoeba, que, normalmente, afeta a população jovem e economicamente ativa, são traiçoeiros, começando com desconforto,

ardência, coceira, fotofobia e lacrimejamento em apenas um ou nos dois olhos, o que faz com que seja facilmente confundida com outras doenças oculares.


"Só que aos poucos a situação vai piorando e, uma vez instalada a infecção, causa dor intensa. Com isso, o indivíduo não consegue comer, dormir, trabalhar...

é um sofrimento imenso", destaca a professora da EPM/Unifesp.

Keila Monteiro de Carvalho, professora titular de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas (FMC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), comenta

que o diagnóstico é difícil e os tratamentos disponíveis são longos e não totalmente eficazes - ele é feito com o uso de colírios, e alguns não existem

no Brasil, tendo de ser importados da Europa ou dos Estados Unidos, e antibióticos.

"O tratamento leva meses e há possibilidade de recidiva. Infelizmente, o transplante de córnea continua sendo a última solução em caso de infecção grave.

Espera-se que a conclusão recente do genoma da Acanthamoeba spp. agilize a identificação de novos alvos farmacológicos (locais na estrutura do agente infeccioso

em que os medidamentos podem atuar)."

É importante salientar que esse tipo de infecção ainda pode trazer outras consequências, como glaucoma, catarata, inflamação da esclera e da retina, queda

da pálpebra e cegueira. A depressão é mais uma decorrência comum.

Para evitar a ceratite por Acanthamoeba, o mais importante é não se expor à água quando estiver com lente de contato e ter muito cuidado com a higiene

das mãos na hora da colocação.

Keila recomenda ainda descartar a solução de desinfecção de lentes usada diariamente, limpá-las com solução nova todos os dias, trocar os estojos a cada

três meses e substituir as lentes nos períodos determinados pelo fabricante.

"Sem dúvida, a visita frequente ao oftalmologista também é fundamental", finaliza.

 fonte BBC News Brasil

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