segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Parte invisível do olhar – Audiodescrição no cinema: a constituição das imagens por meio das palavras: uma proposta de educação visual para a pessoa com deficiência visual no cinema
Cena de massacre na escadaria de Odessa, do filme O Encouraçado Potemkin
A sequência de imagens traz algumas das cenas mais fortes do cinema de Serguei Eisenstein: o massacre na escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin.
O filme é exibido para uma plateia de cegos. Um audiodescritor narra o que acontece na tela. Como descrever as imagens do terror vivido por uma multidão
sendo metralhada? Ou o desespero de uma mãe que vê o filho baleado? Só há uma maneira de ser fiel à proposta do russo Eisenstein: contemplar, na audiodescrição,
(abreviada por AD) a linguagem cinematográfica. Assim, em vez de dizer: "O menino ferido tomba. A mãe continua descendo. O menino grita ‘mãe’ com o sangue
escorrendo pela testa. Ela se vira. Abre a boca apavorada ao ver o filho no chão. Ele chora e desmaia. Ela leva as mãos à cabeça, arregala os olhos", o
audiodescritor prefere: "O menino ferido tomba. A mãe continua descendo. O menino grita ‘mãe’ com o sangue escorrendo pela testa. Ela se vira. Abre a boca
apavorada ao ver o filho no chão. Ele chora e desmaia. Ela leva as mãos à cabeça, arregala os olhos e vem de encontro à câmera. A multidão corre desenfreada.
Foco de pés pisoteando o corpo e a mão do menino que se contrai. Seu corpo rola e o peito é pisoteado diante do olhar de pavor da mãe".
A plateia veria outro filme e, desse modo, a experiência do cinema, que já não é comum à pessoa com deficiência visual, seria ainda mais singular. Quando
um audiodescritor de cinema conhece os movimentos de câmera e os artifícios da montagem, pode usar a linguagem cinematográfica para enriquecer o trabalho
com o objetivo de ajudar a ampliar o repertório imagético dos cegos. Para quem não enxerga, a possibilidade de entendimento do simbólico que tem relação
com o visual, a fruição da arte ou de uma imagem poética, dependem de uma mediação. Esta é a ideia defendida pela audiodescritora Isabel Pitta Ribeiro
Machado na dissertação de mestrado "A parte invisível do olhar – audiodescrição no cinema: a constituição das imagens por meio das palavras: uma proposta
de educação visual para a pessoa com deficiência visual no cinema".
Isabel reforça que a imagem no cinema se comunica pelo conteúdo e pela forma como o conteúdo é captado. "O conteúdo é responsável pelo sentido lógico e
racional. A forma de registro são os planos e movimentos da câmera. Por isso é muito importante uma audiodescrição que não se restrinja somente ao conteúdo
da imagem, mas se estenda também à sua forma de comunicação, pois um dos objetivos da AD é aumentar o repertório imagético das pessoas com deficiência
visual. Como audiodescritora de cinema eu não posso desprezar nenhuma dessas formas de comunicação". A pesquisadora salienta que a linguagem cinematográfica
é importante na audiodescrição, para que o espectador possa absorver o sentido do filme, como apregoa o construtivismo russo de Einseinstein, "no qual
a articulação dos planos é o que dá o sentido do filme".
Acessibilidade
A audiodescrição é um recurso de acessibilidade para cegos, mas também idosos, pessoas com dislexia, síndrome de Down, ou baixa acuidade visual. "É uma
forma de registro a mais da imagem, então mesmo para quem enxerga, mas tem alguma deficiência intelectual, ter acesso a mais uma forma de registro é mais
uma forma de compreensão". Na prática, o trabalho do audiodescritor consiste em descrever oralmente todas as informações visuais, sejam elas estáticas
ou em movimento. Em um museu, o foco será os objetos, em um passeio turístico todo o ambiente ao redor. "Para que a pessoa cega possa conhecer uma obra
de arte, como um quadro, uma fotografia ou mesmo uma escultura que não se possa tocar, é necessária a acessibilidade comunicacional, que consiste em promover,
de algum modo, o acesso àquelas imagens, seja por meio da audiodescrição que pode ser em áudio guia ou impressão Braille, ou uma reprodução em três dimensões".
As imagens em movimento são um capítulo à parte. "Para acessibilidade de imagens em movimento como teatro ou cinema, somente o acesso sonoro não permite
a compreensão do conteúdo e, por isso, o acesso às imagens por meio da audiodescrição é fundamental", ressalta. Sendo assim, na dança, o audiodescritor
descreve o que se passa no palco, assim como no teatro e no cinema, quando a audiodescrição ocorre nos intervalos das falas. Usando ou não a terminologia
própria do cinema, ela elabora um roteiro de AD, depois de estudar o filme e seu autor. A última revisão é feita por um cego. A audiodescrição pode ser
feita ao vivo, como uma tradução simultânea, ou pode ser gravada. Com a Lei do Audiovisual, o recurso de acessibilidade passou a ser obrigatório para projetos
que recebem financiamento público.
No entanto, Isabel ainda considera preocupante “a fragmentação das ideias sobre inclusão e acessibilidade nas escolas e nas universidades, cujas histórias
mostram que, em grande parte, o ensino inclusivo tem sido pensado pelas áreas da educação, da assistência social e da saúde”, enquanto que, de acordo com
a autora, deveria estar ocupando o debate também nas áreas das artes.
A pesquisa também discorreu sobre a aquisição do conhecimento das pessoas com deficiência visual, que ocorre de maneiras diferentes entre os que nasceram
cegos e aqueles que perderam a visão no decorrer da vida, seja na infância ou mais velhos. "A pessoa que nasce cega constrói seus conceitos por meio dos
sentidos, assim como os videntes. No caso de não ter o sentido da visão, seu processo de conhecimento das coisas se dá por meio da estimulação. Na elaboração
do conceito de nuvem, por exemplo, uma audiodescrição do movimento das nuvens pode criar em cada pessoa cega diferentes ideias de nuvem, pois a associação
de ideias ocorre de uma forma individual, ligada a vários fatores, inclusive às experiências na infância e à maneira como cada um foi estimulado". Uma
nuvem branca, por exemplo, pode ser descrita com o apoio da manipulação de um pedaço de algodão, para que o cego associe a maciez do algodão à impressão
visual do vidente ao olhar para uma nuvem.
A descrição das cores também é importante. "Quando se lê a história de Chapeuzinho Vermelho, e as crianças escutam a palavra “vermelho” sabendo que é uma
cor, mas não a conhecem ou percebem pelo tato, a associam ao conhecimento que tiveram, por meio dos que veem, à cor da maçã, do morango e do céu no pôr
ou nascer do sol".
Como descreve as imagens em movimento no intervalo das falas, um grande desafio para o audiodescritor é ser conciso e ao mesmo tempo conseguir passar um
número considerável e importante de informações. Um grande paradigma para o audiodescritor é tentar ser claro e objetivo, enquanto o olhar não o é. Isabel
sabe disso. Estudou filosofia, o cinema e o olhar, além de textos específicos que a inspiram, como “Carta sobre os cegos”, do filósofo e escritor francês
Denis Diderot. Ainda em 1999, quando não se falava sobre o recurso no Brasil, assumiu a audiodescrição de filmes para os cegos que frequentavam o Centro
Cultural Louis Braille de Campinas (CCLBC). O projeto se transformou em um Ponto de Cultura. Ao longo de 11 anos, a audiodescritora discutiu filosofia
e cinema com o grupo de pessoas com deficiência visual.
Para desenvolver a pesquisa, Isabel ministrou um curso de cinema no Museu da Imagem e do Som (MIS) Campinas, para pessoas com e sem deficiência visual.
"Um dos objetivos da realização do curso foi criar uma base de argumentação sustentada pela tríade conhecimento da linguagem cinematográfica, conhecimento
da audiodescrição e formas de aplicabilidade para o público com deficiência visual". Isabel observa que o ambiente de discussão permitiu um avanço das
ideias sobre a audiodescrição no cinema. Os filmes estudados foram exibidos com a audiodescrição ao vivo e, em alguns trechos, acompanhados com o roteiro
de AD.
A autora da dissertação considera a audiodescrição como uma obra de arte, uma criação que é fruto de escolhas, de um olhar próprio. Quando, em uma de suas
sessões de cinema, narrou para os cegos a saída de um personagem por um portão de ferro art noveau, descobriu, por meio da plateia, que ninguém havia explicado
para aquelas pessoas o que era, ou como era o estilo art noveau.
Isabel Pitta Ribeiro Machado, autora da dissertação de mestrado: "É muito importante uma audiodescrição que não se restrinja somente ao conteúdo da imagem”De
modo geral o universo visual não é apresentado aos cegos. Da mesma forma o conhecimento audiovisual do mundo. “Narrar o close do beijo, o close da lágrima
escorrendo, é diferente de falar ‘ela está chorando’, ‘eles estão se beijando’. A pessoa com deficiência visual que desenvolve o simbólico e conhece uma
imagem poética, tem a oportunidade de conhecer a arte e responder o que o cineasta Andrei Tarkovski finalmente pergunta: quem precisa da arte?".
Publicação
Dissertação de mestrado: "A parte invisível do olhar – Audiodescrição no cinema: a constituição das imagens por meio das palavras: uma proposta de educação
visual para a pessoa com deficiência visual no cinema"
Autora: Isabel Pitta Ribeiro Machado
Orientador: Nuno César de Abreu
Unidade: Instituto de Artes (IA).
Sobre Bell Machado.
Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com pesquisa sobre a importância
da linguagem cinematográfica na audiodescrição.
. Graduada em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (2005).
. Atualmente é assessora na Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de Campinas, onde é audiodescritora, responsável pelos
cursos de formação em audiodescrição e capacitação em inclusão e acessibilidade.
. Coordenou de 2005 a 2011 o projeto de inclusão social e digital do Ministério da Cultura: Ponto de Cultura Cinema em Palavras no Centro Cultural Louis
Braille de Campinas.
. Em 2000 iniciou seu trabalho em audiodescrição de filmes para pessoas com deficiência visual. Desde esta data realizou audiodescrição ao vivo de aproximadamente
300 filmes, assim como realizou trabalhos de audiodescrição em eventos de ordem cultural e científica, espetáculos artísticos e programas de televisão.
. Foi professora de História do Cinema de 1999 a 2011 no MIS – Museu da Imagem e do Som de Campinas.
Fonte: Unicamp
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário