terça-feira, 7 de julho de 2015
Mercado cultural de audiodescrição ganha espaço
O dia chegava ao fim quando cerca de 40 pessoas ocupavam o espaço cultural Vila Flores, em Porto Alegre. Eles se preparavam para conhecer a exposição “Este
corpo já foi meu”, da artista gaúcha Marcia Braga. A mostra, além de tátil, oferecia outro recurso: a mediação audiodescrita, técnica ainda pouco utilizada
em produtos culturais produzidos no Brasil, mas extremamente importante para cerca de 35 milhões de brasileiros que vivem com algum tipo de deficiência
visual.
A AD, como é chamada a audiodescrição, possibilita que pessoas cegas ou com baixa visão tenham acesso a filmes, peças de teatro e outros produtos culturais.
“Ela traduz as imagens em palavras e, com isso, propicia que pessoas que não enxergam frequentem eventos e consumam qualquer produto de maneira plena ou
com equiparação às que enxergam”, define Letícia Schwartz, audiodescritora e uma das fundadoras da Mil Palavras, empresa especializada em audiodescrição
de Porto Alegre.
Partiu de Marcia a iniciativa de encerrar a mostra com a mediação audiodescrita. “Queria ter feito na primeira exposição, em 2013, mas só consegui agora”,
conta. Eu conhecia as meninas da Ovni Acessibilidade Universal e procurei pelo serviço delas”, conta, se referindo à empresa das sócias Mimi Aragón e Kemi
Oshiro. Juntas, elas começaram a pensar em como se daria a mediação, acompanhada da experiência tátil.
A artista utiliza materiais como lã, linhas e cerâmica na produção de suas obras, o que as enriquece e proporciona uma experiência sensorial mais intensa.
Durante o evento, o grupo de visitantes se dividiu em três e teve acesso a uma produção cultural que, majoritariamente, ainda não pensa, não vê e não inclui
esse público.
Fotos de duas produtores de audiovisual. Atrás delas está um quadro negro.
A audiodescrição auxilia não só pessoas com deficiência visual, mas também é uma ótima ferramenta para potencializar a concentração. Por isso, eventos
audiodescritos, como a mostra tátil e o Festival de Cinema Acessível, são abertos ao público em geral. Assim, também permitem vivenciar as barreiras que
fazem parte do dia a dia de muitas pessoas. “Os brasileiros estão vivendo mais e, com a idade, perdem mobilidade, visão e audição. Então, a acessibilidade
deixa de ser um problema do outro para ser uma preocupação de todos”, afirma Mimi.
Aplicativo dá mais autonomia aespectadores com legendas descritivas
Desde o ano passado, está disponível no Brasil mais uma ferramenta que oferece audiodescrição (AD) para pessoas com deficiência visual, o MovieReading,
aplicativo desenvolvido pela Universal Multimedia Acess (Uma), da Itália, e trazido ao País pela Iguale Comunicação de Acessibilidade, empresa de São Paulo.
De acordo com Maurício Santana, diretor da Iguale, o aplicativo ainda está em fase de adoção pelas produtoras e distribuidoras de filmes no Brasil, mas
é um recurso fundamental para ampliar a inclusão. “Ao chegar ao cinema, a pessoa vai conectar fones de ouvido ao celular, abrir o aplicativo e selecionar
o filme. O princípio básico dele é fazer o reconhecimento do filme a partir do áudio inicial e começar a reprodução da AD em sincronia com o longa na tela”,
explica.
A ferramenta oferece ainda legenda descritiva e janela com língua de sinais e pode ser sincronizado também com programas de televisão, vídeos da internet
e filmes em DVD. Santana afirma que o aplicativo ainda está sendo apresentado para as empresas nacionais, mas já é amplamente utilizado em países como
Estados Unidos, Inglaterra e Itália. “Além de dar mais autonomia às pessoas que precisam de AD, ele também ganha em qualidade de áudio em comparação aos
equipamentos que são utilizados para fazer a audiodescrição ao vivo”, analisa.
A produção da audiodescrição passa por três profissionais: roteiristas, narradores e consultores. Em um filme, por exemplo, cabe ao roteirista escrever
um texto para o tempo entre as falas e que auxilie na construção das imagens. “O narrador é quem faz a locução e o consultor é, preferencialmente, um profissional
com deficiência visual que vai validar todo o trabalho feito anteriormente”, explica Letícia Schwartz, audiodescritora e uma das fundadoras da Mil Palavras.
Além de Letícia, a Mil Palavras conta ainda com a consultoria da professora Marilena Assis e do psicólogo André Campelo, que conheceu a audiodescrição
depois de um dia no caótico e inacessível Centro de Porto Alegre. “Foi uma descoberta que nasceu com muitas barreiras no Centro e culminou com um filme
com audiodescrição à tarde”, relembra Campelo. Marilena avalia que a experiência que tem com a educação contribuiu para o aprendizado da nova profissão.
“Hoje, tenho um conhecimento mais técnico, um aprendizado que é nosso, que a deficiência nos dá”, afirma ela.
O tempo estimado para a produção de um filme com AD é de 20 dias. Já para o teatro, o ideal é acompanhar a produção até dois meses antes da apresentação.
“Na prática, sempre trabalhamos com um número menor de dias, mas precisamos de um tempo paramergulhar naquele produto e entender o que eles querem com
aquilo e, principalmente, qual é o público alvo”, explica Kemi Oshiro. Mimi Aragón, sócia de Kemi na Ovni Acessibilidade Universal, destaca o potencial
de consumo de pessoas que vivem com algum tipo de deficiência: “qual empresário não está interessado em um público de 45 milhões de pessoas?”, questiona.
A jornalista e consultora em audiodescrição Mariana Baierle, que conhece de perto os entraves vividos por deficientes visuais, lamenta a escassa variedade
de produtos. “Ainda estamos presos a algumas sugestões porque não somos vistos como pessoas que querem ter acesso a filmes, DVDs, vídeos. Mas queremos
e podemos pagar por isso”, defende Mariana.
Porto Alegre está entre os principais polos nacionais de consumo do recurso
Aos poucos, a audiodescrição começa a ganhar espaço. Apesar de um número ainda baixo de produtos com o recurso, Porto Alegre é um dos polos nacionais que
mais aposta na área, junto com São Paulo e Recife. O cinema tonou-se a área que mais investe no recurso. No ano passado, a Agência Nacional de Cinema (Ancine)
determinou que todos os filmes e demais produções audiovisuais aprovadas desde 18 de dezembro de 2014 e financiados com recursos públicos incluam legenda
descritiva, audiodescrição e Língua Brasileira de Sinas (Libras).
A Ovni Acessibilidade Universal, empresa das sócias Kemi Oshiro e Mimi Aragón, sente os reflexos da decisão, que fez com que o mercado crescesse. “A lógica
se inverteu. Costumávamos ir em busca das produtoras, e agora são elas que batem na nossa porta”, destaca Mimi. Para Kemi, a obrigatoriedade, além de atrair
mais produtores, oportuniza que as pessoas com deficiência possam ter o direito de escolha. “Nem todo mundo dito ‘normal’ gosta de cinema, frequenta museu
e teatro, mas por que essas pessoas podem escolher ter acesso ao produto ou não enquanto outros não podem?”
Uma das iniciativas que tem atraído a atenção do públido é o Festival de Cinema Acessível, idealizado pelo Estúdio Som da Luz. A mostra se encerra nesta
sexta-feira, dia 3, com a exibição do filme Tropa de Elite, na Casa de Cultura Mario Quintana. No dia 19 de junho, o público pôde conferir outro dos cinco
títulos nacionais que formaram a programação. A exibição oferece, além da audiodescrição, os recursos de tela com libras e legenda.
Sidnei Schames, sócio do Som da Luz, diz que a ideia surgiu da percepção de uma carência de produtos culturais acessíveis na cidade. “Estamos trabalhando
para a criação deste nicho, mas é bem difícil, já que ‘esconder’ as pessoas com deficiência é algo cultural e ainda muito forte”, aponta, ao destacar que
24% da população do Estado vive com alguma deficiência. Schames observa que todas as sessões tiveram a sala de cinema lotada: 126 espectadores na primeira
e 122. na segunda. “A terceira ocorreu em um dia de muita chuva e, mesmo assim, tivemos 82 pessoas na sala”, comemora.
O projeto inicial contava com 12 filmes, porém, só foi possível obter patrocínio para cinco. “Temos mais sete títulos que precisam de apoio de empresas
para serem exibidos”, aponta a jornalista Mariana Baierle, que é colaboradora do festival e consultora em AD. Mariana, que é deficiente visual, consegue
dar uma colaboração mais efetiva ao avaliar se a audiodescrição oferece todos os recursos para a construção do imaginário presentes no filme. “A oferta
de produtos com AD ainda é muito restrita, mas esse festival prova que iniciativas podem acontecer na prática”, avalia.
Universidade abre curso de especialização voltado à área
A Universidade Federal de Juiz de Fora (Ufjf), em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) oferece o primeiro
curso de Especialização em Audiodescrição. A primeira turma do curso está formando profissionais de todo o Brasil, que estão aptos a ampliar o conhecimento
e a importância do recurso.
A pós-graduação é coordenada pela especialista em audiodescrição Lívia Motta, que ministra cursos sobre a ferramenta desde 2005. Lívia também organizou,
junto com Paulo Romeu Filho, a obra Audiodescrição: transformando imagens em palavras, primeiro livro sobre o assunto lançado no Brasil. Mais 100 novas
vagas para a formação estarão disponíveis no segundo semestre deste ano.
As empresárias Letícia Schwartz, da Mil Palavras, e Kemi Oshiro, da Ovni Acessibilidade Universal, e a professora e consultora Marilena Assis estão cursando
a pós-graduação, que é semipresencial. “Essa é a primeira possibilidade de capacitação acadêmica para o audiodescritor. Até então, a formação dependia
de cursos de extensão ou da iniciativa pessoal de quem quisesse trabalhar na área”, aponta Letícia, que é formada em Artes Cênicas e que começou na profissão
por conta própria.
Fonte: site Jornal do Comércio por Luana Casagranda – Foto: ANTÔNIO PAZ/JC.
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