sábado, 16 de setembro de 2017

Peça feita por cegos aborda a deficiência visual e a passagem do tempo

Criado pela companhia de teatro Corpo Tátil, do Instituto Benjamin Constant, o espetáculo “Dá um tempo pra falar de tempo” está em cartaz no Teatro Armando

Gonzaga, no centro do Rio de Janeiro

Foto do espetáculo “Dá um tempo pra falar de tempo”. Em um palco, duas pessoas, um jovem negro e uma jovem branca com cabelos escuros, interagem. Ao fundo,

há dois homens e uma mulher sentados em um banco, conversando
No palco, numa cena inusitada, a personagem vivida pela atriz Sara Santos, que é cega, faz uma piada com o fotógrafo: “Você está vendo como eu estou maquiada?”,

pergunta. Ele responde que sim, e ela diz: “Eu não”. Nesse tom bem humorado, a companhia de teatro Corpo Tátil, do Instituto Benjamin Constant, prepara

uma curta temporada no Teatro Armando Gonzaga, no Centro do Rio. Do espetáculo “Dá um tempo pra falar de tempo” participam Sara e outras quatro pessoas

com deficiência visual.

Desde a criação da companhia, no ano passado, o elenco subiu nos palcos de espaços como o Liceu de Artes, a UFF e o Centro Cultural da Justiça Federal.

Os ensaios, realizados uma vez por semana, são recheados por momentos de descontração, sobe e desce de escadas, troca de figurinos e dribles com desenvoltura

no que estiver pelo caminho — do banco que fica no centro do cenário a uma caixa de som.

Dirigido pela professora de teatro Marlíria Flávia, o Corpo Tátil é o desdobramento de um outro grupo, batizado com o nome do Instituto Benjamin Constant,

e que atuou entre 2003 e 2015. Após uma série de peças marcadas pela constante renovação do elenco, que obedecia à chegada de novas turmas, Marlíria resolveu

se dedicar exclusivamente a um quinteto, composto por um estudante e quatro ex-alunos.

A nova montagem é um exemplo do tom democrático do grupo. Uma integrante propôs uma peça que abordasse o tempo, enquanto outro queria mostrar à plateia

o que é a deficiência visual. As duas propostas foram votadas pelo grupo e costuradas num só espetáculo.

— As pessoas devem assistir a uma peça boa, feita por bons atores. O objetivo não é apresentar a pessoa com deficiência visual como um pobre coitado —

afirma Marlíria, autora do texto final, ao admitir sua resistência inicial em falar sobre a cegueira para o público.

Mudança de atitude

Na opinião dos idealizadores da peça, as pessoas com deficiência visual foram tratadas durante muito tempo como “invisíveis, inexistentes” e colocadas

à margem da única cultura considerada legítima: a das pessoas que enxergavam. E o sentimento delas, durante muito tempo, era o de que não deveriam fazer

parte da sociedade ou, na melhor das hipóteses, precisariam se adaptar. Para Marlíria, a mudança de pensamento vem acontecendo “aos poucos”, com o aumento

da discussão sobre temas como inclusão e diversidade.

A peça atualmente encenada pelo grupo acompanha a trajetória de um casal ao longo da vida, com dois atores interpretando pessoas com deficiência visual.

Um deles é Felipe Pereira, de 25 anos, que vive o protagonista Jorge. Estudante do 3° ano do ensino médio, o ator concilia a preparação para o vestibular

deste ano, em que tentará cursar música, o trabalho com o Grupo Tátil e também com outra companhia teatral.

— Eu queria falar sobre pessoas com deficiência visual na peça porque percebo que as pessoas não sabem como nos tratar — explica. — Muitas vezes, por puro

desconhecimento, mas às vezes a sociedade nos impõe outros limites. Por isso precisamos de paciência para mostrar o que nós somos capazes de fazer.

No meio do espetáculo, parte do elenco mostra agilidade e independência ao trocar rapidamente de roupa no canto do palco. E os atores se divertem ao contar

que muitos acreditam que as pessoas cegas não sabem fazer isso sem errar no figurino. Mas, para eles, é mais simples do que parece:

— Ninguém coloca nenhuma peça do avesso — conta a diretora.

Intérprete de Clarissa, uma mulher que não tem deficiência visual, a professora Claudia Rodrigues se divide entre o palco do Instituto Benjamin Constant,

na Urca, Zona Sul do Rio, e uma escola pública em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde dá aulas de língua portuguesa e literatura no ensino fundamental.


— Gosto de ir para ambientes precários, porque as pessoas parecem mais propensas a acolher alguém que não faz parte de sua realidade, como um cego — conta

Claudia, de 29 anos. — Nunca tive uma pessoa com deficiência visual na turma. Para que este tema não seja um tabu, deixo que me perguntem o que quiserem.

Meu convívio diário com os alunos me ajudou a montar a personagem.

Além de diversas situações apresentadas no enredo do espetáculo — como encontros casuais e uma festa —, o texto ainda inclui momentos mais sérios, em que

os atores reproduzem relatos verídicos sobre cegos. Junto com Sara, Claudia e Felipe, estão no elenco Johnatan Rodrigues, de 18 anos, o único do grupo

que tem baixa visão, e Acauan Posino, de 16 anos, o único da companhia que nasceu cego.

Fonte:
O Globo Site externo

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