Ontem no Dia Internacional da
síndrome de Down
, mães criticam falta de negros com a condição genética nas campanhas da data; trissomia não depende da cor de pele, mas a maioria das iniciativas de inclusão
mostra só brancos
“Olha, mãe. Ele é parecido comigo”, disse Alexsander Marcílio, de 19 anos, ao encontrar um menino negro com Síndrome de Down no YouTube. O rapaz viu poucas
vezes pessoas com a sua cor de pele e condição genética nas ONGs que frequenta, o que incomoda sua mãe, Evanira Aparecida, de 58 anos. “A sociedade acha
que pessoas negras com Down não existem. Isso afeta a autoestima”, lamenta.
Moradora de Hortolândia, no interior de São Paulo, Evanira é dona de casa e cuida do filho ao lado de seu marido Wagner Marcilio, 61, que trabalha como
pedreiro. A mulher atua na defesa dos direitos do jovem desde o nascimento dele, foi conselheira municipal de saúde de sua cidade e já participou de fóruns
internacionais sobre a trissomia.
Mesmo assim, nunca ganhou os holofotes das campanhas de inclusão. “Sempre me envolvi nos eventos e eu era a única mãe negra neles. Mas nunca fui chamada
para nada, porque meu menino é negro. Ele não tem o rosto que as pessoas querem ver”, critica.
O geneticista e pediatra Zan Mustacchi explica que o incômodo da mãe faz sentido, uma vez que a incidência de Down é a mesma em negros, brancos e qualquer
outra etnia ao redor do mundo. Isso porque a síndrome se dá por uma divisão celular que resulta em um material genético extra do cromossomo 21, sem qualquer
relação com a cor da pele.
‘O empoderamento negro não chegou para quem tem síndrome de Down’
A reclamação de Evanira reflete a desinformação que existe na sociedade. Muitas pessoas acham que a síndrome de Down só afeta brancos, e dos 56 primeiros
vídeos do YouTube sobre o tema, apenas um mostra um negro com essa característica. No Google Imagens, a proporção piora: só dois são afrodescendentes entre
as 200 primeiras fotos que aparecem no site. Esses números contradizem a realidade da população brasileira, em que 54% é afrodescendente.
De acordo com a presidente da Federação das Associações de Síndrome de Down, Lenir Santos, que atua há 33 anos na causa, parte do apagamento se deve ao
perfil social dessas famílias negras afetadas, uma vez que não chegam aos centros de grande visibilidade. A maioria é pobre, não tem condições de arcar
com as terapias médicas e algumas sequer sabem os cuidados especiais que se deve ter com quem tem a trissomia do cromossomo 21. “O empoderamento negro
não chegou para quem tem síndrome de Down. Muitos afros estão se empoderando, encontrando lugar na sociedade, mas o com deficiência não. A imagem dele
continua velada”, analisa.
Alexsander, por exemplo, só participou até hoje das atividades da Fundação Síndrome de Down, em Campinas, mesmo com o ativismo de sua mãe. Por vir de família
humilde, ele depende da ajuda da prefeitura de Hortolândia para receber tratamentos dentários especiais, ir ao fonoaudiólogo e fazer aulas de dança para
estimular a coordenação motora. Além disso, uma psicopedagoga particular atende o rapaz de graça. “Como a gente é pobre, usamos as armas que temos”, conta
Evanira.
Vale ressaltar que não há dados oficiais sobre a o perfil das pessoas com a trissomia do cromossomo 21. A única informação que a comunidade médica possui
é a de que nasce um a cada 750 mil com a condição genética no Brasil. Lenir Santos explica que essa escassez de informação dificulta mapear o gênero, faixa
etária e etnia das pessoas mais vulneráveis, complicando a criação de políticas públicas mais específicas.
Início do grupo Alexsander gosta de tocar violão e dançar. Evanira e Wagner Marcílio acompanham as habilidades do jovem. Foto: Ricardo Lima / Fundação
Síndrome de Down
Alexsander gosta de tocar violão e dançar. Evanira e Wagner Marcílio acompanham as habilidades do jovem. Foto: Ricardo Lima / Fundação Síndrome de Down
Fim do grupo
Neste ano, a única ONG que mostrou a diversidade racial no Dia Internacional da Síndrome de Down foi o Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural. Assista
aqui.
Herança física também ajuda a invisibilizar o negro com Down
O geneticista Zan Mustacchi aponta que a pouca evidência das pessoas negras com a condição genética se deve ao fato de os traços fenotípicos dos afrodescendentes
do Congo – que vieram para o Brasil na época da escravidão – serem próximos dos que as pessoas com Down têm. O nariz achatado, rosto arredondado, a fissura
palpebral e a junção entre o nariz e o olho são características existentes em ambos. Assim, fica ainda mais evidente a condição genética quando um branco
aparece com essas feições. “O negro com Down não é tão percebido, diferente dos que são anglo-saxões, por exemplo”, analisa.
A vertente científica, no entanto, não diminui o desejo de Evanira em um dia ver seu filho aparecendo tanto quanto os brancos nas campanhas publicitárias
e reportagens. Aliás, o lema do Dia Internacional da Síndrome de Down deste ano é “ninguém fica para trás”, mas o coração da mãe não consegue enxergar
verdade nesta frase ao sentir todos os dias a invisibilidade racial e a desigualdade social que existe no Brasil. “Nestes 19 anos lutando, meu menino não
entrou em destaque nenhuma vez. Se a sociedade não levantar uma bandeira, talvez a mudança nunca aconteça.”
Início do grupo Alexsander Marcílio pousa ao lado do pai, Wagner, enquanto andam de bicicleta. Família acredita que a representatividade das pessoas negras
com Down é utópica diante do que veem nos dias de hoje. Foto: Ricardo Lima / Fundação Síndrome de Down
Alexsander Marcílio pousa ao lado do pai, Wagner, enquanto andam de bicicleta. Família acredita que a representatividade das pessoas negras com Down é
utópica diante do que veem nos dias de hoje. Foto: Ricardo Lima / Fundação Síndrome de Down
Fim do grupo
Fonte:
https://emais.estadao.com.br/
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