domingo, 15 de dezembro de 2013
Cegos feios, sujos e malvados
O texto conta um pouco da história e das dificuldades enfrentadas por de
Vanderlei, que é deficiente visual.
da Redação
O desabafo vem do Vanderlei, 59 anos, morador de uma cidadezinha de
Minas Gerais e cego há quase vinte anos depois de um grave acidente de
trabalho como
mergulhador em uma plataforma de petróleo: "Quando fiquei cego, a dor de
não enxergar foi menor do que a dor de ser banido, excluído da
sociedade. Perdi
tudo: mulher, amigos, emprego. O mundo deixou de ser um bom lugar para
mim. Virei alguém menor e descartável. Não era mais considerado igual
aos outros.
Briguei sozinho e durante muito tempo por direitos básicos para no final
conseguir apenas ser chamado de radical, chato, mala e xiita. Ainda
assim, tenho
orgulho de minha única vitória: o legado que deixei a minha filha, hoje
uma grande lutadora pela acessibilidade”.
Entre o bom humor e a melancolia, o Vanderlei desfia histórias de
discriminação e humilhações semelhantes às de milhares de cegos, com a
diferença de não
deixar barato nunca: "Quase fui preso uma vez por avançar em um safado
de um vereador! Mas depois de tantos anos tentando ser ouvido, tentando
mudar as
coisas, quem é que não perde a paciência? Vou te dizer uma coisa, se eu
fosse mais jovem, ia até São Paulo e ficava pelado ao meio-dia de uma
sexta-feira
em frente ao MASP, na avenida Paulista, que hoje em dia é assim que se
chama a atenção. Não tem aquelas meninas lindas do FEMEN? Mostram os
peitos e na
hora viram manchete no mundo inteiro. Então, o ceguinho pelado pode não
ser um espetáculo tão bonito, mas que eu ia falar no Jô, na Marília
Gabriela e
no Fantástico, ah, isso eu ia!".
O relato do Vanderlei ilustra bem o que vemos diariamente: de um lado, a
omissão do poder público, o descaso da sociedade e o inexplicável
silêncio e os
braços cruzados dos cegos diante de históricos abusos e desrespeito; de
outro, a luta árdua de no máximo meia dúzia de gatos-pingados, os
radicais e xiitas,
assim chamados porque denunciam a violação de seus direitos fundamentais
com todas as letras e sem concessões. Já são muito poucos e a forma com
que lutam,
com contundentes opiniões e cobranças, acentua ainda mais o contraste.
Postura comum e muito melhor compreendida quando vem de videntes
reivindicando ou
denunciando alguma coisa; de emails, artigos, entrevistas inflamadas,
concentrações e passeatas nas ruas até invasões de órgãos públicos e
barreiras de
fogo bloqueando estradas, fazem com que as manifestações destes cegos
pareçam amenas conversas ao redor de uma mesa de chá às cinco da tarde.
Fora que a luta de videntes encontra muitos e variados espaços de
discussão em todo o país, o que também não acontece quando o assunto é
deficiência e
muito menos quando é a visual. No caso dos cegos chamados de radicais e
xiitas, é só chegar mais perto, ouvi-los, acompanhar suas discussões em
fóruns
virtuais para constatar o que realmente importa: sua luta é justa,
legítima, limpa – frequentemente e muito convenientemente ignorada, mas
raramente contestada.
Só para citar uma discussão recente, como aceitar calados o não
cumprimento da lei federal do ano 2000 que prevê a instalação de
semáforos sonoros nas
cidades brasileiras, dispositivos básicos, de fundamental importância
para quem é cego? São Paulo só tem dois! Vale a pena destacar um trecho
de entrevista
concedida a este blog pelo jornalista e radialista carioca Marcus
Aurélio de Carvalho, baixa visão, com quase trinta anos de carreira em
rádios, até o
ano passado gerente executivo da Rádio Globo São Paulo e afiliadas:
“…Pode perceber como semáforos sonoros neste país só existem em frente a
instituições
para cegos. A mensagem clara é: pode ir estudar! Vai entrar pela porta
do ônibus que não paga, chegar com segurança, ficar só com quem é
parecido com você
e depois voltar para casa! E se o cego se apaixonar e quiser ir a um
motel? Ah, aí não dá, porque lá não tem semáforo com sinal sonoro
(risos)… E se quiser
tomar um chopp? A mesma coisa, só vai se for levado por alguém que enxerga”.
Será que os cegos sentem-se satisfeitos, respeitados e atendidos na
defesa de seus direitos por secretarias de governo e organizações
criadas para representá-los?
Ou parecem mal saber para que servem? Existem eficientes políticas
públicas para a acessibilidade da pessoa com deficiência visual? Há
punição para o descumprimento
de leis? Será que estão contentes com a altíssima tributação sobre a
tecnologia assistiva? Compram seus livros acessíveis das editoras ou
pegam emprestados
das bibliotecas públicas, como fazem os videntes que não têm dinheiro
para comprá-los? A resposta é, invariavelmente, não.
Enquanto isso, assistimos este ano à choradeira emocionada por conta de
um tratado internacional que facilitaria o acesso dos cegos aos livros,
notícia
reproduzida e comemorada sem que ninguém soubesse o que era - aliás, até
hoje não foi divulgada uma única linha informando com clareza o conteúdo
do acordo!
E foi cego chorando no twitter, o cantor e compositor Stevie Wonder
chorando em cima de um palco, toda uma comoção pelo que já era esperado:
o fortalecimento
ainda maior do monopólio das instituições para cegos sobre o livro
acessível. Isso, sim, é de chorar! E, para citar mais um episódio
recente, o veto à
ampliação da audiodescrição na televisão brasileira, que nem com reza
brava sai de algumas míseras horinhas semanais de programação nas
emissoras abertas,
justamente na TV, a principal forma de lazer do brasileiro e, portanto,
o veículo que permitiria o acesso muito maior da maioria dos cegos do
país à informação,
à cultura, à diversão.
Um amigo cego diz que a última grande revolução na vida de quem tem
deficiência visual chama-se leitor de tela e não teve nenhum dedo do
governo ou de
qualquer instituição assistencialista. Com exceção da Convenção da ONU
sobre os direitos das pessoas com deficiência, não temos muito o que
comemorar em
conquistas significativas no presente, daí, então, a exaltação contínua
ao passado de vitórias que, embora louváveis e de extrema importância,
principalmente
pela união e garra nunca mais vistas, foram um primeiro passo. Na falta
de bons projetos, eis que governantes vão ainda mais longe no tempo e
dizem à exaustão
em palestras que "avançamos muito, porque até pouco tempo atrás as
pessoas com deficiência eram atiradas em rios, poços ou precipícios". Ou
esta, totalmente
vaga e também repetida feito um mantra: "Aos poucos, vamos conquistando
o que é preciso". Os cegos radicais e xiitas assim são chamados porque
vão muito
além das belas frases e mensagens de otimismo e esperança,
inconsistentes e tolas quando desacompanhadas de ações efetivas e por
estas, sim, são eles os
únicos a lutar.
fontr:outros olhares
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