quinta-feira, 29 de outubro de 2015
A batalha homérica das pessoas com deficiência para ter acesso à cultura
Geziel entrou pela primeira vez no Santa Isabel com a reportagem - 'É
tão bonito'.
Geziel entrou pela primeira vez no Santa Isabel com a reportagem: “É tão
bonito”.
Antes de achar a entrada, Michell caiu. Naquele dia, ele não queria usar
bengala. Preferiu não perguntar onde estava o palco, o banheiro, o bar,
o portão
de saída do show de Los Hermanos, o primeiro ao qual foi sozinho. Vítima
de glaucoma e com baixa visão, o estudante de comunicação social de 26
anos enfrenta
dificuldades diárias de locomoção, mas o consumo de cultura e lazer é um
dos desafios com mais obstáculos.
“A gente quer independência, e os espaços não dão condições. Não há
filmes com audiodescrição, só em festivais. São poucas peças e poucas
horas na TV”,
diz o representante da Associação de Cegos de Pernambuco no Conselho da
Juventude e consultor da Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com
Deficiência
(Sead).
As dificuldades e conquistas de Michell Platini e outros 2,4 milhões de
pernambucanos com deficiência para desfrutar cinema, teatro, museu, casa
de show
ou boate plenamente acessível no estado são tema da série Cultura
limitada. Apesar do alto índice – 27% da população do estado e 24% do
país -, medidas
simples ficam à margem das decisões de instituições, produtores e até
órgãos públicos.
“A pauta da acessibilidade cresceu, principalmente nos últimos cinco
anos. Tenho visto seminários, eventos. Há leis para promover a
acessibilidade na cultura.
Mas o estado não aplica, porque desconhece campo, complexidade e
recursos de mediação”, analisa a terapeuta ocupacional Patrícia
Dorneles, criadora da
primeira especialização em acessibilidade cultural do país, na UFRJ.
A adaptação da legislação é recente e lenta, mas os avanços são
detectados na minimização de barreiras físicas, comunicacionais e de
atitude. “Já tentei
ver a peça Cinderela, com Jason Wallace, no Teatro de Santa Isabel, e me
disseram que não tinha acessibilidade. Depois, descobri que tinha, mas a
pessoa
não soube informar. Vou muito ao cinema, pois a estrutura é melhor”,
conta Geziel Bezerra, de 31 anos, cadeirante há 15.
Com baixa visão por conta de um glaucoma, Michell quer independência
para desfrutar o lazer.
Com baixa visão por conta de um glaucoma, Michell quer independência
para desfrutar o lazer.
Com a reportagem, o assessor técnico da Coordenadoria de Inclusão da
Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos de Olinda
entrou pela primeira
vez no prédio de 1850, cujas rampas e elevador foram instalados em 2002.
“Vi em fotos e na TV, mas não imaginava tão bonito. Quero ver um
espetáculo”.
A linguagem Braille foi oficializada em 1962, mas 95% dos livros não têm
versões acessíveis, de acordo com a Fundação Dorina Nowill Para Cegos.
Poucas
obras de autores ligados ao estado premiadas em anos recentes podem ser
consumidas por cegos. Só em 1989, com a Lei 7.853, foram estabelecidas
normas universais
de acessibilidade na educação, saúde, formação profissional e no mercado
de trabalho, nos recursos humanos e nas edificações. A cultura ficou de
fora.
A audiodescrição na TV se tornou obrigatória em 2000 (Lei 10.098), mas o
prazo não foi definido. Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi
sancionado
em julho deste ano, após 15 anos de discussões.
Em Pernambuco, só em 2015 o principal edital de fomento (Funcultura)
passou a exigir cópia com legendagem descritiva, Libras e audiodescrição
de filmes
e produtos para a TV e a aprovação de pelo menos um projeto com ações de
acessibilidade. O número de iniciativas aprovadas foi de nenhum, em
2007/2008,
para seis, em 2013/2014, diz a Fundação do Patrimônio Histórico e
Artístico de Pernambuco (Fundarpe). A instituição não soube informar a
quantidade dos
outros segmentos.
Nas artes cênicas, a popularização esbarra no despreparo técnico das
casas e produções. O Teatro Luiz Mendonça, do Dona Lindu, e o Sesc de
Goiana são os
únicos do estado com recursos de audiodescrição. O Teatro do Parque deve
se adequar na reforma iniciada em 2010. “O mercado para o lazer
acessível está
em ascensão. Pesquisas mostram que, a cada três dólares empregados em
acessibilidade, o lucro é de sete”, atesta o doutor em psicofísica
Francisco Lima,
professor da UFPE.
Paulista e cego de nascença, mora no Recife desde 2002 e reforça que as
barreiras interpessoais são as mais graves. Em muitos casos, é o
preconceito, e
não as dificuldades físicas, estruturais e tecnológicas, que impede o
pleno acesso a direitos básicos garantidos por lei. São as chamadas
barreiras atitudinais,
as principais vilãs de uma cultura acessível.
+ depoimentos
“O lazer faz parte da vida, e eu gosto muito do Recife Antigo. Não
adianta ter meus direitos básicos se não tenho ao lazer e à cultura. É
complicado sair
à noite, mas vou a shows, sempre em camarote ou frontstage, e é raro
sair sozinha. A barreira não é só a acessibilidade física, mas
atitudinal. Há muitos
lugares que não recebem bem a gente. Isso me incomoda. Se você quer
saber algo sobre mim, pergunte a mim. No ano passado, fui ao Cais do
Sertão. Lá tem
primeiro andar, mas não tinha acessibilidade, pois o elevador-plataforma
estava em manutenção (o equipamento está desativado e deve voltar a
funcionar
em 20 dias)”
Renata Maia, 25, tem deficiência física, devido a uma paralisia
cerebral. É formada em serviço social, tem pós-graduação em direitos
humanos e estuda para
concursos.
“Certa vez, cheguei a uma loja, estendi a mão e colocaram uma moeda. Já
ouvi muito ‘fulano, vem atender esse rapaz’. Isso mexe com a dignidade
da pessoa.
Uma vez ou outra, a pessoa ri. Aprendi uma coisa muito chata, mas que
funciona: se você fala que acessibilidade é uma lei federal, são duas
horas. Se você
‘grita’, num instante é resolvido. Em restaurante, já perguntaram à
minha filha, de 12 anos, o que eu queria comer. Já pedi para tirarem uma
mesa para
dar espaço a um amigo, cadeirante, e disseram que não podia. Como eu sou
um professor universitário, doutor, educado, coloquei uma em cima da
outra e pronto”
Francisco Lima, 50, é doutor em psicofísica e professor da Universidade
Federal de Pernambuco. Nasceu cego e estava no primeiro Rock in Rio, em
1985.
“Eles dizem que é acessível, mas, na prática, é sempre complicado. O
Teatro de Santa Isabel é o melhor a que já fui, porque você fica nos
camarotes, sem
se sentir tão desigual. Fui a um espetáculo em julho, A matinada, com
mestres do coco, mas preciso de ajuda, porque a entrada é com gramado.
No Teatro
Luiz Mendonça e no Boa Vista, tem que ficar em cima, onde vocês,
andantes, passam, mas não no lugar das cadeiras. Eu toco pandeiro,
caixa, mineiro, alfaia,
ganzá e um pouco de atabaque. Comecei a tocar de berço, com 6 anos. Já
participei de muitos desfiles no carnaval, mas agora só participo da
abertura, com
Naná Vasconcelos. Atualmente, estou me formando para ser um griô
(difusor da tradição) aprendiz.”
Liu Dias, 27, é multi-instrumentista e integrante do grupo Afojubá
Batuque. Devido a um problema nos tendões, nunca pôde andar e é
cadeirante desde os
11.
+ O QUE DIZ A LEI // Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de
6 de julho de 2015) e Lei 12.933, de 26 de dezembro de 2013
– “É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com
deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes (…) à
acessibilidade,
à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à
comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao
respeito, à liberdade,
à convivência familiar e comunitária, entre outros”
– “A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao
turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,
sendo-lhe garantido
o acesso: a bens culturais em formato acessível; a programas de
televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em
formato acessível;
e a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam
serviços ou eventos culturais e esportivos”
– “O poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à
redução ou à superação de barreiras para a promoção do acesso a todo
patrimônio cultural”
– “As salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de
acessibilidade para a pessoa com deficiência. (prazo de 48 meses para
adequação)”
+ O QUE É PRECISO // Normas para atender às pessoas com deficiência
– Audiodescrição é o principal recurso de promoção de acesso aos
conteúdos culturais para pessoas com deficiência visual, em filmes,
apresentações cênicas,
exposições e visitas educativas.
– Legendas (mesmo para filmes nacionais) e janelas com tradução para
Libras permitem que o filme seja acompanhado por surdos
– A comunicação em Libras deve ser usada em visitas, palestras,
espetáculos e atividades culturais. Para surdos oralizados e com baixa
audição, há recursos
de indução magnética, intérpretes de voz ou de leitura labial
– O espaço deve disponibilizar placas, folhetos e mapas informativos em
português, Braille, letras ampliadas com contraste, símbolos, legendas e
sinal
sonoro, quando aplicável, além de piso e mapa tátil
– Barreiras arquitetônicas devem ser eliminadas, com destaque para
rampas, elevadores, pisos e passarelas planos e antiderrapantes,
corredores e portas
amplos, entre outras diretrizes estabelecidas pela NBR 9050, da ABNT
– Materiais de apoio sensoriais (táteis, auditivos, olfativos e
gustativos) auxiliam a usar outros sentidos para compreender melhor os
conteúdos das manifestações
culturais
– A capacitação dos profissionais é um dos mecanismos mais importantes,
pois elimina barreiras atitudinais e permite a comunicação oral e
escrita objetiva
de forma compreensível
Fonte: Diário de Pernambuco
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário